segunda-feira, 22 de julho de 2013

No ônibus.





















Por Leonardo Möller

— Esta mulher não deve ter nada o que fazer — berrou o motorista para quantos quisessem e não quisessem escutar. — Afinal, quem é tão à toa pra ler 150 páginas num só dia?

— É! — se regozija o trocador. — Só pode ser isso. Eu não aguento ler nem 15 páginas num dia; leio 5 e durmo feito um bebê.

— Sabe como leio livro? — retoma instigante o condutor. — Leio é virando ele de costas e vendo o que está atrás. Pronto, tá lido! — e a geral vai ao delírio em risos que deixam o motorista com aquele ar de orgulho, de quem acaba de revelar uma esperteza, um jeitinho mais astuto de fazer qualquer coisa tida como trabalhosa.

Não gostar de ler tem raízes históricas e culturais profundamente arraigadas à nossa tradição. Tem mudado — aos poucos, é verdade — mas os números divulgados pela Biblioteca Nacional são relativamente animadores. Relativamente porque, embora tenhamos passado de 1,4 livro per capita/ano para mais de 4, o que é uma vitória, essa conta mágica inclui os livros didáticos distribuídos gratuitamente no Brasil, que tem o maior programa do gênero no mundo. Portanto, quanto aos hábitos de leitura, compreendo e penso que cabe a nossa sociedade, a nós, o desafio de superar isso.

O que me intriga e deixa estupefato é outra coisa. É algo que se reflete no ar de sabichão do motorista, insuflado pela minguada plateia ali presente. É a esperteza de ser inculto, o orgulho de ser ignorante, o vanglorio da mediocridade, a empáfia de achar que é no não saber que reside a verdadeira sabedoria e que, por conseguinte, quem estuda é bobo, quem procura saber é tolo, quem quer ir além da superficialidade não passa de idiota ou careta.

Que explica esse culto à mediocridade que vigora hoje em dia? Como entender que a falta de instrução do morro pacificado e da nova classe C tome conta da cidade, em vez de a civilização subir as vielas da miséria? (Bom, é verdade: em favelas há mais casas com TV de tela plana que com reboco e tinta na parede, mas isso é outro assunto.)

Afinal, quando foi que a indigência intelectual e a pobreza cultural foram elevadas à categoria de desejáveis e viraram “cool”? Será que a ascensão de um presidente que não só é iletrado mas se orgulha de ser bufão e despreza o que vai além da maquiagem e da superficialidade explica suficientemente esse fenômeno? A meu ver, apenas em parte; não pode ser tudo.

Quando se convencionou que os “funks” cariocas, pagodes, axés e sertanejos de baixo nível, com letras vulgares e que refletem o total descaso com a língua, a cultura e a dignidade do ser humano, seriam aceitáveis, mesmo entre pessoas letradas e da elite econômica? Por certo não era essa a admirável cultura popular que homens como o grande Ariano Suassuna queriam ver reconhecida — e, ironicamente, continua restrita a certos meios, “cult” e impopular como sempre foi.

Nesse mesmo dia da conversa ouvida no ônibus, alguém me disse que eu deveria descer um pouco do “meu mundo”, conhecer as gírias, os gostos e “da ralé, do povão”. Deve ser a centésima vez que ouço essa cantilena. “Você não conhece o leque-leque? — escreve-se assim? — Mas como?”

Acho intrigante porque desde criança ouvi exatamente o contrário. Tanto em casa como na escola, era incentivado — e cobrado, também, graças a Deus! — a saber a matéria, estudar mais, conhecer o nome e o estilo dos autores, saber organizar a biblioteca, o nome dos ministros de estado (é verdade, eram apenas 10, e não 39), a concordância nominal e, antes disso, a dicção, para não sair dando pontapés no peito do idioma, um dos maiores patrimônios de uma nação.

Alegrava-me quando aprendia algo disso tudo, embora fosse mais comum me aperceber da porção de coisas ignorada, fatia sempre maior, muito maior. Perante algo desconhecido, a reação era dúbia: de encanto — “Meu Deus, quanta coisa interessante há por conhecer neste mundo!” — mas também de vergonha — “Meu Deus, quanta coisa não sei!”. A gente chegava a mentir sobre o que conhecia, de tão vergonhoso que era não saber ou saber tão pouco.



Naquela época, saber algo era considerado admirável, desejável, bonito. (Estou tão velho assim?) Meu avô, agricultor que deve ter saído da escola com 10 anos, como era praxe no Brasil de então — ele é de 1910 —, sabia fazer contas de cabeça como poucos. Era imbatível na aritmética, aliado fundamental à época de comerciante e dono de moinho, com os quais Getúlio acabou no Rio Grande. Pobre, saiu cedo da escola, mas sabia mais que o grosso dos universitários de hoje, que lê sofregamente ou sofrivelmente e escreve pior ainda. Nosso programa de férias? Ele tomar-me as capitais dos estados brasileiros. Quando ficou monótono, a sabatina enfocava as capitais dos países ao redor do globo. Antes de chegarmos à África, ele ficou muito doente e ranzinza, quando eu tinha uns 12 anos. Sabia da política, lia jornal até morrer — pensando bem, talvez eu tenha herdado dele o horror a Getúlio Vargas. Era um homem não só informado, como de resto todos os meus parentes, muitos dos quais bastante pobres, vivendo na área rural, mas que admiravam o mundo novo a penetrar e perscrutar: o mundo do conhecimento.

Onde foi que isso se perdeu, afinal? O brasileiro comprou TV de tela plana, bebe Coca-Cola todo dia, pode viajar em 10 vezes pela CVC e ir ao shopping com seu carro financiado a juros escorchantes — compra-se um, pagam-se dois e vende-se por meio — e, por tudo isso, está se achando o máximo? Espelha-se no seu guru, que diz ser “do povo” dentro de seu costume Armani de R$6 mil — talvez seja porque tem no jogo do timão o mais relevante evento cultural por que se interessa — e acha que consumir substitui o instruir-se? O delírio coletivo é de que bens não duráveis valem mais que a fantástica jornada de abraçar este mundo sempre tão maior que nossos braços e mente?

O ufanismo que exalta inclusive a ignorância tem de acabar. Sair às ruas pedindo melhor educação não bastará para nos tirar da letargia. Será preciso recuperar o gosto e a disposição por aprender. Ver em quem lê não um desocupado, mas alguém que ilumina a humanidade ao iluminar-se a si mesmo. Será preciso valorizar quem estudou, quem educa e ensina, quem conquistou o saber, quem é autoridade em determinada matéria. Melhor educação só virá quando educar-se for considerada tarefa nobre e almejada pela maioria, sempre e permanentemente, dentro e fora da escola.






(* Caso ocorrido em 13/7/2013, às 14h, num ônibus urbano de Belo Horizonte, MG.)

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