sexta-feira, 5 de julho de 2019

Em viagem a terra estrangeira

por Leonardo Möller, editor da Casa dos Espíritos

    Várias foram as reflexões suscitadas nos bastidores da preparação do novo livro do espírito Ângelo Inácio, Os viajores: agentes dos guardiões. Conheça algumas delas e um pouco do que encontrará na obra inédita do médium Robson Pinheiro.

“Todo mundo quer voar além/ Mas é preciso aprender”
Paulinho Pedra Azul

Durante a preparação do texto de Os viajores, fui questionado por dois voluntários da UniSpiritus — a qual reúne as três instituições beneficentes fundadas por Robson Pinheiro — acerca da formação de coordenadores tanto de reuniões mediúnicas quanto de determinada tarefa de grande responsabilidade. Desempenhar ambas as funções exige não apenas conhecimento técnico, mas também, entre outras aptidões, sintonia afinada com a equipe espiritual e maturidade para tomar decisões graves, que afetam diretamente a qualidade do trabalho prestado. Em momentos distintos do mesmo dia, a dúvida era semelhante: “Por que não preparamos mais pessoas? Afinal, com mais dirigentes, poderíamos ampliar o número de atendimentos, diminuir a espera imposta aos consulentes, acomodar mais médiuns nas atividades e, enfim, aumentar a produtividade”. Nas entrelinhas, uma insinuação ou, talvez, suspeição: seria uma espécie de ciúmes ou “reserva de mercado” da parte dos encarnados à frente das atividades que impedia tal expansão, certamente justificada pela demanda?

Há detalhes da biografia e da atuação voluntária dos autores das perguntas que dão ao contexto ainda mais peculiaridade, porém, deixando de lado os aspectos particulares, ocorreu-me depois que determinada noção perpassava o pensamento de ambos. Possivelmente, trata-se de um conjunto de ideias comum a muitas pessoas engajadas em atividades de natureza espiritual. Foi então que me dei conta: essa é exatamente a motivação do novo livro de Ângelo Inácio, muito embora, seguramente, não seja a única. Pode se desdobrar em diversos pontos a serem examinados essa convicção de fundo que detectei naquele questionamento.


ESPÍRITO E MATÉRIA


Um dos enganos comuns ao se analisar a administração de conhecimentos e faculdades de ordem transcendental é aplicar critérios puramente materiais sem ressalva, isto é, sem fazer certa adaptação ao assunto em pauta. A diferença mais notória é que, no mundo profissional, selecionam-se indivíduos com perfil mais adequado à função a ser ocupada mediante determinada remuneração. No âmbito do trabalho com os espíritos, recrutam-se colaboradores principalmente conforme sua disposição, levando-se em conta as aptidões disponíveis no universo restrito de voluntários que se engajam e se comprometem com a causa. Há uma máxima que resume esse princípio: Jesus capacita aqueles a quem chama. 

Se porventura ocorre a alguém que seria no mínimo mais prático chamar os capacitados, recomendo a leitura da parábola do festim de bodas (Mt 22:1-14). Ali o próprio Galileu enuncia a mecânica que rege a vocação de servir à causa do Cordeiro, pois, ao iniciar a história, explica: “O reino dos céus é como um rei que preparou um banquete de casamento para seu filho” (Mt 22:2). Ou seja, ele afirma que as coisas funcionam na Terra segundo os princípios arrolados na sequência, uma vez que reino dos céus refere-se às questões humanas, diferentemente da expressão reino de Deus, também frequente nos evangelhos.


TREINO OU INICIAÇÃO?


Outro equívoco contido na noção daqueles dois amigos é o de que, para os assuntos do espírito, seria o bastante treinar as pessoas, a ponto de dominarem certos conhecimentos ou ao menos manejá-los com relativa destreza. Novamente, tal perspectiva, corriqueira na vida material, não pode ser adotada em tópicos de âmbito mediúnico ou espiritual sem a devida adaptação. Há muito mais fatores em jogo; por vezes, estes preponderam a ponto de se tolerar até a falta de perícia do candidato, devido à presença de outras virtudes. Aliás, a ciência espírita demonstra que, entre faculdades extraordinárias e qualidades morais, os bons espíritos, na impossibilidade de conjugar ambos os atributos, tendem a preferir o último deles em quem elegem para lhes servir de intermediário.[1] Caso conhecimento técnico fosse o suficiente, os apóstolos não teriam incorrido nos enganos fragorosos que cometeram após três anos de aprendizado com o próprio Mestre; entretanto, se fosse fundamental, Jesus não teria escolhido simples pescadores como Pedro e André para o seguirem.

Quando respondi às indagações dos colegas, apontei dois elementos centrais que lhes passaram despercebidos. Maturidade é o primeiro deles. Está aí uma conquista que só o tempo pode dar — mas nem sempre a concede; não mesmo! — e que não se ensina em aulas. Ela não garante imunidade a erros, até porque é passível de crescer sempre, porém, sem o mínimo de maturidade, é certo que o destino, nas coisas espirituais, não será nada promissor.

Ao lado desse aspecto, é preciso lembrar a profecia: “Hão de surgir falsos cristos e falsos profetas, e farão grandes sinais e prodígios; de modo que, se possível fora, enganariam até os escolhidos” (Mt 24:24). As provas espirituais às quais é submetido quem é chamado a servir com Jesus, a fim de que se faça eleito, são fato conhecido. Em minha trajetória à frente de equipes mediúnicas e na direção de uma casa espírita desde 1998, já testemunhei a derrocada ou a deserção de grandes trabalhadores, nos quais muito investimento dos espíritos havia sido feito, tanto quanto a mera deliberação, da parte de alguns desses encarnados, de que preferiam não assumir tamanhas atribuições naquela altura. Por óbvio, os ataques de agentes das sombras e as provas da vida são diretamente proporcionais às responsabilidades e ao volume de investimento do bem. Os colaboradores de valor que acompanho há anos e décadas foram alvejados por desafios e empecilhos que me fazem admirar sua persistência — e que lhes deram, vez após outra, todos os pretextos para que deixassem tal compromisso, o qual, apesar disso, não abandonaram.


ESCOLHAS


Uma das passagens marcantes do livro Os viajores é a da médium Maíra, convidada pelos guardiões, espíritos ligados às forças da justiça, a atuar em parceria com eles. Após Maíra submeter-se a muitas noites de treinamento sob a supervisão deles, em desdobramento — ou seja, projetada, em espírito, na dimensão extrafísica —, é num diálogo travado com o espírito Pai João de Aruanda que seu destino é selado. A despeito da intervenção do animista Raul, bem mais experiente, ela mantém sua decisão, que os espíritos superiores sempre, sempre sabem respeitar.

Acompanhamos também, ao longo de um número maior de capítulos, a trajetória da personagem Diana. Desde os primeiros episódios de manifestação de sua mediunidade, quando passa certo sufoco no exercício da sua profissão — a fim de que se suscitasse seu despertar para as questões espirituais —, até as provas árduas que enfrenta na vida pessoal — no intuito de provocar seu amadurecimento —, vemos que se tornar agente dos guardiões não é uma escolha a ser feita de forma leviana, tampouco uma decisão trivial, diante da qual se possa hesitar e oscilar entre esta ou aquela posição, num vaivém que se traduz em indefinição. Nesse ínterim, passam-se noites e mais noites, horas e mais horas de experiências que têm por finalidade capacitar a cadete em formação, ao mesmo tempo que lhe esclarecem quanto às características e aos percalços inerentes ao serviço na companhia dos representantes da justiça divina.

Já no capítulo inicial, os personagens principais do livro se encontram numa conferência na cidade de Aruanda, que reúne numerosos espíritos de variada procedência e na qual são debatidas as iniciativas gerais em prol da chamada transição planetária, isto é, o momento de transformação global por que passa a Terra. Allan Kardec, o codificador do espiritismo, explicou esse estágio como sendo os sinais dos tempos.[2] Em tal reunião, as contribuições dos encarnados, as obras de reurbanização extrafísica e outros temas mais são objeto de discussão dos espíritos.

Após se estabelecerem diretrizes segundo as quais novas investidas deveriam ser encampadas, um destacamento composto por aqueles personagens parte rumo a uma importante empreitada. Nesta, descrita em detalhes na obra, dedicam-se com ardor à formação de médiuns e parceiros para atuar em conjunto com os guardiões e os demais espíritos envolvidos nos trabalhos dessa hora de renovação planetária.


PRAZER EM CONHECER


Em meio às histórias e às peripécias envolvendo Maíra, Diana, Rosário, Raul e outros encarnados, grande volume de conhecimento é oferecido por personagens já apresentados aos leitores por Ângelo Inácio, especialmente Pai João de Aruanda — o pai-velho chamado João Cobú —, Caboclo Tupinambá e Maria Escolástica, a antiga ialorixá reverenciada sob o nome de Mãe Menininha do Gantois. Num dos tópicos mais instigantes, esclarecem por que os nomes de falanges ou categorias de pretos-velhos geralmente são assinalados por sobrenomes como de Aruanda, da Guiné, da Cabinda ou de Angola, entre outros.

Um dos elementos principais que perpassa a trama de Os viajores é a necessidade premente de aprender sobre a geografia, as características e as leis que regem os planos inferiores — que constituem, em última análise, o local onde o animista se verá tão logo saia do corpo físico por meio do desdobramento. Qualquer um que deseja ultrapassar com o mínimo de desenvoltura e lucidez os portais da dimensão astral, visando a uma atuação proveitosa com emissários do Alto, deve estar consciente dos elementos da natureza extrafísica e dos habitantes desse mundo cheio de particularidades.

Como pode alguém pretender colaborar com os espíritos de forma eficaz se não for capaz de distinguir formas-pensamento daninhas nem elementais artificiais, seres dotados de vida própria que representam ameaça àquele viajor que penetrar os meandros do submundo? Aprofundando-se as informações já descritas em Legião — obra de Robson Pinheiro que inicia a trilogia O reino das sombras —, conhecem-se mais propriedades de criações mentais nefastas como aquelas com feições de baratas, lacraias, escorpiões e formigas, mas, também, as serpentes e os vampiros, mencionados pela primeira vez pelo autor espiritual. Estes últimos, aliás, provocaram nos bastidores da edição da obra uma discussão sobre terminologia, assunto sempre envolto em dúvidas no tocante aos temas espiritualistas. Afinal, até então, o vocábulo vampiro designava apenas o espírito especialista em drenar energias, porém, agora se revela que esse termo também é usado para indicar um elemental que, possivelmente, poderia ser denominado sanguessuga, não tivesse já se consagrado com aquele nome.

Uma espécie de habitante dos pântanos do plano inferior a que o leitor é apresentado são as chamadas sombras, que, na verdade, consistem em massas vitais que adquirem aspecto de humanos desencarnados, mas não os são. Formam-se a partir de cascões astrais, isto é, resíduos de corpos astrais e etéricos em decomposição, e condensam emoções em dose intensa e de baixíssima vibração. Para os médiuns em desdobramento, representam grande ameaça, pois com eles podem estabelecer conexão e, então, levá-los a mergulhar em universo de pensamentos desconexos, com evidentes prejuízos à sua atuação e até à sua saúde.

Em dado ponto desta descrição sumária dos temas abordados em Os viajores, há quem possa ficar com a impressão equivocada de que tais assuntos interessam prioritariamente — e, talvez, unicamente — àqueles que intentam agir em regime de parceria com os espíritos. Ledo engano. Como descobrimos ao longo do livro, muitos são os encarnados que, ao desdobrarem, acabam sendo atraídos para espaços como os pântanos do submundo por questões de afinidade. Claro: além de exigirem atenção da parte dos agentes em formação, essas pessoas constituem motivo de alerta a todos que se interessam por temas espirituais, uma vez que o conhecimento é capaz de esclarecer sobre os riscos a que determinados comportamentos e atitudes adotados em vigília podem expor o indivíduo. Afinal de contas, todos nos desprendemos do corpo físico durante o sono, em alguma medida. Nesse momento, por sintonia vibratória, buscamos e chegamos, na dimensão do espírito, a ambientes compatíveis com nosso estado, em conformidade com o que cultivamos. De fato, como se vê, é preciso aprender a viajar.



Leonardo Möller

Editor da Casa dos Espíritos, professor e coordenador de reuniões mediúnicas na Casa de Everilda Batista e instrutor do Master em Apometria, curso com Robson Pinheiro.


[1] “Influência moral do médium. Perguntas diversas”. In: KARDEC, Allan. O livro dos médiuns ou guia dos médiuns e dos evocadores. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro: FEB, 2011. p. 362-363, item 226, §8.
[2] “Os tempos são chegados. Sinais dos tempos”. In: KARDEC, Allan. A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro: FEB, 2011. p. 513-533, cap. 18, itens 1-26.