sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Robson Pinheiro convida: Tambores de Angola, 20 anos





Há 20 anos, nascia o livro Tambores de Angola. Era a estreia do espírito Ângelo Inácio na minha psicografia. Digo nascia porque o verbo é esse mesmo; foi uma espécie de parto prematuro, com implicações dignas de uma gestação abreviada e dos percalços da UTI neonatal. Explico.

O ano era 1997. Saíra eu de uma boa temporada no hospital, quando fui desenganado pelos médicos, pois cheguei a ficar 19 dias em coma. No dia seguinte à alta, o espírito Alex Zarthú afirmou que era preciso escrever. Protestei, me queixei, mas é difícil não ser persuadido pelo benfeitor. Eram 8h15 quando começamos. Presumi que redigiria, ele próprio, uma breve mensagem, entretanto, parou só pouco depois do meio-dia. À exceção do último capítulo, estava pronto o original que viria a se transformar no maior best-seller da editora Casa dos Espíritos. Foi também minha primeira vez psicografando num computador, o que fiz de pé, ininterruptamente, ao longo daquelas horas, pois a convalescença me impedia de sentar.

O livro foi lançado no ano seguinte. Na literatura espírita, Tambores é pioneiro ao apresentar a origem histórica da umbanda e do espiritismo, diferenciando ambas manifestações religiosas sem denegrir nenhuma delas, exaltando o que têm de melhor. Da mesma maneira — até então, inédita no espiritismo —, ousou abordar a atuação de pretos-velhos, caboclos e exus, figuras envoltas em tanta desinformação e em tanto tabu e preconceito.




Recebido com o coração aberto por leitores ávidos, o romance era controverso demais aos olhos de “donos de centro” e de certas entidades do movimento ortodoxo, uma das quais chegou a publicar uma nota de repúdio em jornal institucional, uma espécie de excomunhão dos hereges que, segundo entendiam, éramos nós.

Em vão tentaram calar os espíritos e nos boicotar. Já foram vendidos mais de 215 mil exemplares da obra ao longo desses 20 anos. Mais importante que isso é notar que hoje se fala, com abertura impensável àquela época, na contribuição fundamental que dão pais-velhos, mães-velhas, caboclos e exus. Afinal, são a própria expressão da cultura brasileira e do psiquismo nacional, e espíritos sérios não se pautam por barreiras religiosas. Contemplar esse resultado, que credito em parte ao sucesso do livro de Ângelo, enche-me de contentamento e alegria. 
Para celebrar este momento marcante na minha história e na da Casa dos Espíritos, preparamos uma comemoração especial. Convidamos você a participar da nossa festa amanhã, 18/11, às 19 horas. Além de mim, reuniremos o editor Leonardo Möller e Marcos Leão, que acompanhou todas aquelas peripécias desde o início. Teremos bate-papo, apresentações artísticas e desenho mediúnico.


O evento será na Casa de Everilda Batista, na Grande Belo Horizonte, e também será transmitido ao vivo em nossa página do Facebook. Não deixe de comparecer a essa noite tão significativa, quando estaremos em festa, dos dois lados da vida, para agradecer. Aguardo você!
 

— Robson Pinheiro

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Coisa de preto


www.livrariarobsonpinheiro.com.br
Por que falar de pretos-velhos e caboclos desperta reações tão adversas? Por que a simples menção dessas figuras, que povoam o folclore, a literatura e a cultura popular do Brasil, faz muitos dirigentes espíritas vetarem livros e repreenderem médiuns? Por que o preconceito racial se estende para além-túmulo?

Certo dia reparei em um companheiro de atividades, cheio de dedos ao falar abertamente do trabalho que realizam a Casa dos Espíritos Editora e a instituição parceira que lhe deu origem, a Casa de Everilda Batista. A vergonha ou o receio que ele tinha devia-se especificamente à bandeira hasteada por ambas as casas, na qual declaram positivamente: “Trabalhamos com pretos-velhos e caboclos”.

— Mas o que o movimento espírita vai pensar? — perguntava ele. — Uma casa espírita aparecer com músicas como as que estão no cd Cantigas de preto-velho? Que casa espírita lança um cd com canções associadas a pretos-velhos e caboclos?

— Entendo suas apreensões — respondi. — Acontece que a nossa sina começou há muito tempo, desde a publicação de Tambores de Angola. Quando lançamos o livro, você se lembra, muitos disseram que havíamos nos tornado umbandistas; agora não há como voltar atrás.

— Então! Imagine um cd

— Mas alguém precisa falar contra o preconceito. Só porque o autor espiritual aborda o tabu umbanda e espiritismo quer dizer que deixamos de ser espíritas? Só porque lançamos um cd com canções que homenageiam os pretos-velhos e caboclos, que tanto têm feito por nós, espíritas, tornamo-nos “antidoutrinários”? Faça-me o favor! Não perdemos a definição espírita de nossas atividades, porque espírita é o método de trabalho. Kardec é bom-senso, e o codificador debatia qualquer assunto, sem medo nem ideias preconcebidas. Quanto aos espíritos, para eles não há barreiras religiosas: onde está o códice que informa a aparência correta de um “espírito espírita”? Kardec fala que é o conteúdo da comunicação que importa, e não a aparência do espírito, que pode ser forjada com facilidade.

As preocupações do companheiro de trabalho, no entanto, não eram infundadas. Com efeito, tudo que se relaciona à cultura religiosa do negro costuma ser assunto controverso, especialmente no meio espírita. Não obstante tanta relutância tenha fortes raízes históricas, é hora de começar a arrancá-las.



Aculturação

O espiritismo de Allan Kardec floresceu no final do séc. xix, entre as camadas mais abastadas da população brasileira, em meio às elites intelectuais e econômicas. O que era de esperar, tendo em vista que é uma doutrina filosófica de implicações morais e científicas, escrita em idioma estrangeiro, oriunda da França, país que à época detinha a hegemonia cultural e ditava as regras do que era chic.

O processo de aculturação do espiritismo, ao aportar num país de características tão diversas quanto o Brasil, também era previsível, senão necessário. Além da tradução para o português, era crucial assimilar os aspectos que compunham a história e a cultura brasileiras, caso houvesse a intenção de disseminar a nova doutrina. E havia, pelo menos da parte dos espíritos que coordenam os destinos da nação.


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Espírito também tem cor (!)

Uma das questões que em breve viriam à tona diz respeito à feição ou à roupagem fluídica dos espíritos presentes nas reuniões mediúnicas. Para onde iriam os espíritos de negros e indígenas que desencarnavam na psicosfera brasileira? Além dos médicos, filósofos, advogados e demais intelectuais, também morriam os pobres do povo e os pretos, recém-alforriados pela Lei Áurea de 1888.

Que critérios estabelecer?

Nas páginas de Kardec, nada sobre pretos-velhos ou caboclos, pois que não havia nem emigração das colônias africanas para a França. No máximo, o depoimento de um soldado, morto nos campos de batalha das guerras nacionalistas do continente europeu. Como proceder, então, com essa gente desencarnada?

Assim como a prática de capoeira outrora foi considerada crime, prevista no Código Penal, falar em preto, ainda mais velho, é assunto proibido em muitos locais. Ouvem-se espíritas a debater teorias: “Se der ‘estrimilique’, se errar na conjugação verbal e fizer menção a arruda e guiné”, que são as ervas da medicina de que dispunha a população, “é espírito atrasado”.

A lógica absurda tem justificativa. Afinal, como receber orientação daqueles mesmos que mandávamos amarrar no pelourinho e durante tanto tempo foram comercializados na praça pública, como gado? As imagens do passado espiritual estão fortemente impressas em nossas mentes.



Espiritismo cana-de-açúcar

Às vezes chego a me sentir como se estivéssemos fazendo espiritismo num engenho do Brasil colonial. É que, resquício da época da escravidão, subsiste um certo pavor de se misturar com qualquer coisa que venha dos negros.

É o advento da senzala na realidade espiritual.

Negros não prestam para assumirmos como mentores e reconhecermos como espíritos elevados. Para divulgarmos sem barreiras: “Eles nos têm muito a ensinar com sua simplicidade e sabedoria popular”, também não. No máximo, para fazer um “descarrego” no ambiente — ops!, limpeza energética — ou para lidar com os “obsessores” rebeldes ao diálogo tradicional.

Tudo na mais perfeita discrição. O quanto for possível, sem alarde, para não darmos o braço a torcer, admitindo que, nessa hora, não são os médicos nem os padres e as irmãs de caridade que atuam. Não são eles que se dirigem às profundezas do umbral ou do astral inferior para abordar qgs das trevas.

Ah! E se aparecer um Zé Grosso ou um Palminha, espíritos hoje nacionalmente conhecidos e reverenciados no meio espírita, esqueçamos que eles foram cangaceiros do bando de Lampião, o que quer dizer: nordestinos, provavelmente analfabetos, acostumados ao lombo do jegue e ao chapéu de couro — e certamente à pele escura e queimada de sol. Mesmo que trabalhem com Joseph Gleber, Fritz Hermman ou Scheilla, fechemos os olhos para o fato de que seus nomes destoam da característica europeia dos demais e continuemos a nos enganar.

Mas se negros e mulatos não prestam para aparecer e ser reconhecidos, não aguentamos viver sem eles — nem ontem, nem hoje.

Na época colonial, o negro não sabia de nada, mas a cana-de-açúcar que produzia a riqueza era plantada, colhida e beneficiada por suas mãos. Não eram tidas como gente, mas foram as mulheres pretas que criaram os filhos, amamentaram os bebês, cuidaram da casa, do jardim e das roupas, prepararam a comida que serviam aos convidados.

Na atualidade, mesmo sem gozar do reconhecimento amplo — que não é seu objetivo —, as mães e os pais-velhos dão importante contribuição nos centros espíritas “kardecistas” de todo o Brasil. Aceitos ou não, já se acostumaram com a discriminação; não é isso que importa.

Percebidos ou não pelos médiuns da casa-grande, são os caboclos que manipulam o bioplasma das ervas, são os pretos-velhos que preparam o ectoplasma utilizado em reuniões de cura e tratamento espiritual. São eles que, por vezes, detêm a sabedoria simples que tocará aquele espírito furioso, revoltado com a fome, o abandono e a chibata que experimentou e que muitos de nossos médiuns, doutrinadores e mentores desconhecem. São eles que farão frente aos chefes das trevas, impondo-lhes o respeito, o limite e a autoridade moral, o que uma alma mais doce ou delicada não poderia fazer. Acaso estou enganado e situações como essas só ocorrem em terreiros de umbanda?

É ou não é o perfeito engenho, a estrutura social da colônia que se reproduz de modo atávico e ancestral, projetando-se até na questão espiritual?


 
De Paris para o Pelô

O primeiro centro espírita com base nos livros de Kardec de que se tem notícia no Brasil foi fundado em Salvador, na Bahia de Todos os Santos, no ano de 1865. Ex-capital federal, ostenta até hoje o belo Elevador Lacerda, que conduz à Cidade Baixa e ao mercado em que se vendiam negros.

Está aí um retrato fiel do ambiente espiritual brasileiro: Allan Kardec posto justo ao lado do Pelourinho. Talvez mera coincidência, talvez uma forma de a vida nos lembrar do compromisso que temos com os povos negro e indígena — explorados e massacrados pela civilização dos colonizadores — e que deve ser resgatado desde já, também no trato com o além-túmulo.

Que cesse o preconceito e que vivam as curimbas e as mandingas de preto-velho, a garra e as ervas dos caboclos. Que viva a atmosfera espiritual do Brasil, onde cada um mantém seu método de trabalho, mas sabe respeitar e auxiliar onde quer que seja preciso, com espírito de equipe e de solidariedade. Que vivam os médicos alemães, as freiras e os padres católicos, os árabes e indianos de turbante, os soldados de Roma e todas as falanges e nações que, na pátria espiritual, se reúnem em torno da insígnia de Allan Kardec — e, sobretudo, sob a bandeira do Cristo, de amor e fraternidade.





Da França para o Brasil, dos livros à cesta básica

O espiritismo popularizou-se como uma religião no Brasil principalmente devido à influência de Francisco Cândido Xavier (1910-2002), dada à repercussão de sua obra e ao respeito que conquistou. Com bastante ênfase na ação social ou obras de caridade, emprestando feição consoladora e confortadora ao trabalho dos espíritos, o médium de Pedro Leopoldo, MG, era tido unanimemente como exemplo de amor e abnegação. Inspirou a fundação e transmitiu orientações espirituais a centenas de instituições beneficentes em todo o país, além de ter deixado mais de 400 livros psicografados, que prestaram contribuição inestimável à consolidação da mensagem espírita.

Antes dele, outros ícones também deixam transparecer o esforço dos dirigentes espirituais da nação brasileira para transformar o espiritismo em algo acessível à população em geral. A ideia era adaptá-lo ao contexto histórico e sociocultural do país, sem contudo perder sua feição científica e filosófica, que deveria se manter despojada da pompa acadêmica.
Assim, existiram intelectuais que muito contribuíram para a disseminação do espiritismo e, durante toda a vida, foram homens com notável atuação junto à população de baixa renda. Destacam-se, entre outros, o médico, deputado federal e presidente da Federação Espírita Brasileira, Adolfo Bezerra de Menezes (1831-190), bem como o médium notável e professor Eurípedes Barsanulfo (1880-1918), fundador do Colégio Allan Kardec, em Sacramento, no Triângulo Mineiro.


Leonardo Möller
Editor da Casa dos Espíritos, professor e coordenador de reuniões mediúnicas na Casa de Everilda Batista e instrutor do Master em Apometria, curso com Robson Pinheiro.
 


Texto escrito originalmente para o jornal Spiritus, publicado e distribuído pela Casa dos Espíritos Editora e pela Casa de Everilda Batista. Junho de 2004.