Futuro do subjuntivo
por Leonardo Möller, EDITOR
“DISTOPIA (substantivo feminino). Qualquer representação ou descrição de uma organização social futura caracterizada por condições de vida insuportáveis, com o objetivo de criticar tendências da sociedade atual, ou parodiar utopias, alertando para os seus perigos.”[1]
Se é verdade que a Nova Jerusalém, descrita nos capítulos finais do Apocalipse de João, é uma utopia, no sentido estrito, é igualmente verdadeiro que o livro profético, tal como o restante da Bíblia, dedica a maior porção de seus textos a esmiuçar a batalha a fim de que o bem prevaleça nos indivíduos e, por consequência, sobre a Terra, e não a descrever e pintar as cores daquela sociedade imaginária onde reinaria a completa felicidade. À diferença de várias outras correntes de pensamento, porém, a política do Cordeiro põe em primeiro lugar os meios, os métodos ou o caminho para se chegar ao fim, àquele ideal de concórdia e paz. Isto é: para Cristo, somente meios nobres são capazes de assegurar o destino abençoado. De partida, os dez mandamentos[2] estabelecem sólidas bases éticas e esclarecem, em poucas palavras, que com a conduta não se brinca, com ela não há como transigir. Seis séculos antes do nascimento do Galileu, declarava-se que, entre os verdadeiros representantes da política divina, não vale qualquer golpe ou subterfúgio para chegar aonde se quer.
Em consonância com a tradição judaica, sobre a qual se funda, o Evangelho não enuncia nem preconiza a busca da utopia a qualquer preço; pelo contrário, o calvário revela que Jesus prefere a cruz à traição dos princípios que viveu e apregoou. Ao submeter-se aos poderes do mundo e ressuscitar, ele demonstra, na prática, que bem-aventurados são os mansos, os pacificadores e os misericordiosos;[3] ao curar e realizar prodígios, ilustra que o bem prospera e perdura seja conforme as convicções do indivíduo — “Tua fé te salvou”[4] — seja, principalmente, segundo suas ações — “Vai-te, e não peques mais”.[5] Além disso, ao afirmar que bem-aventurados são os pobres em espírito, os que choram, os limpos de coração e os que sofrem injúria, perseguição e calúnia por causa da sua política,[6] o Nazareno indica que o reino por ele anunciado não eclodirá como num passe de mágica entre os homens. Mais: se bem-aventurados também são os que têm fome e sede de justiça,[7] isso implica dizer que seus seguidores vivem em meio à injustiça. Para dirimir qualquer dúvida, no sermão profético ele assevera: fomes, terremotos, guerras e rumores de guerras são apenas “o princípio das dores”. E vai além: “se aqueles dias não fossem abreviados, ninguém se salvaria”.[8]
Se tal é a realidade, por que tantos religiosos insistem na visão utópica do futuro? Manter a fé no Senhor só é possível se a recompensa ou a salvação estiver ali na esquina, logo após a próxima curva? O otimismo exacerbado é fruto da fé, que faz confiar no desfecho vitorioso, ou da falta de fé, que impõe agarrar-se à promessa de um futuro glorioso, cuja chegada seja breve, a fim de suportar as agruras do presente e as incertezas do amanhã?
O célebre escritor e visionário francês Jules Verne (1828–1905), ou Júlio Verne, considerado o precursor do gênero hoje chamado ficção científica, alia-se ao sensitivo norte-americano Edgar Cayce (1877–1945), ambos agora na dimensão espiritual, para deixarem de figurar como personagens em tramas do espírito Ângelo Inácio e, enfim, tomarem da pena da mediunidade e elaborarem o retrato de um futuro possível. A partir do presente, traçam uma projeção — decerto caricatural, em alguma medida —, a fim de lançarem os olhos sobre o panorama mundial no final do século XXI. Até lá, muito há de mudar; com efeito, penetramos o campo da conjectura ao delinearmos o que nos reserva a realidade cerca de 60 anos à frente. Mas acentuado grau de imprevisibilidade acaso é motivo para não imaginar, não se arriscar nem cogitar sobre os rumos que toma a humanidade? De modo algum este ensaio trata de profecia ou predição, até porque nem mesmo esta constitui algo líquido e certo, mas alerta quanto à tendência prevalente. Consiste, antes, em um exercício de ficção baseado em circunstâncias reais.
Os autores detêm experiência pregressa na área, cada um à sua maneira: o romancista responde por uma prosa franca e reputadamente premonitória, em muitos aspectos, e o paranormal especializou-se em vaticínios sobre as esferas tanto privada como pública, com notável índice de acerto. Contam, na realidade extrafísica, com determinadas vantagens, entre elas, as inigualáveis bibliotecas daquele mundo e informações apuradas mediante contato com inteligências invulgares, comprometidas com a verdade, a ordem e o progresso na Terra. Meramente a visão de espírito já é atributo muito especial. Ao estudar a faculdade premonitória, o codificador do espiritismo compara o ponto de vista dos espíritos ao de um homem em cima de um cume, a observar a planície em redor. Na paisagem abaixo de onde está, o homem nota que um viajante prossegue por uma estrada ignota. Do alto, sobre o monte, pode antever as surpresas que, para o viajante — isto é, o ser encarnado —, constituem o futuro desconhecido.[9]
O cenário que desenham Verne e seu colaborador, Cayce, não é acalentador. Pouco conforto oferecem aos espíritas que circunscrevem a propalada transição planetária a intervalos humanos de tempo — algumas poucas décadas, talvez… — ou que idealizam a Terra se tornando um mundo de regeneração[10] quase por milagre, ou seja, por meio de intervenção abrupta e divina. Igualmente não proporcionam grande alento aos demais cristãos que tomam de modo literal passagens deste teor: “E quando o Filho do homem vier em sua glória, e todos os santos anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória. E todas as nações serão reunidas diante dele, e apartará uns dos outros, como o pastor aparta dos bodes as ovelhas”.[11]
Em 2080, o meio ambiente exige cuidado especial e apresenta deterioração mais ou menos importante relativamente às condições de vida de que usufruem os habitantes das primeiras décadas do presente século. As relações internacionais não são regidas por convivência mais harmoniosa entre as nações do que se vê na atualidade. Com o desenvolvimento da tecnologia, que permite, entre outras coisas, a exploração de Marte e o erguimento de uma base em Cidônia, região no hemisfério norte do planeta vizinho, os desafios de natureza geopolítica e diplomática tornam-se ainda mais complexos. No retrato delineado, não se verifica significativo avanço de ordem moral, ao menos na média dos habitantes, embora haja, como hoje, grupos e mais grupos comprometidos com tal objetivo.
De qualquer modo, às vésperas do colapso das negociações internacionais, quando todos os acontecimentos pareciam conduzir a uma nova guerra mundial, a uma espécie de Armagedom, desponta o inimigo comum: um astro em rota de colisão com o sistema Terra-Lua. Ainda que seu prenúncio suscite mais conflitos, tal fato aos poucos se mostra como um divisor de águas nas relações humanas. A ameaça de natureza externa não é a única, porém. E é no agravamento de todos os elementos que se precipita a narrativa, tendo como estopim a morte misteriosa do papa e a escolha, com rapidez recorde, do sucessor, que acabaria por transformar definitivamente as feições do trono de São Pedro. Somos apresentados aos personagens Michaella, Hadassa e aos chamados novos homens, cuja atuação é um dos fios condutores que norteiam a aventura de Júlio Verne.
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[1] “Distopia”. In: DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
[2] Cf. Ex 20:2-17.
[3] Cf. Mt 5:5,7,9.
[4] Mt 9:22; Mc 5:34; 10:52; Lc 7:50; 8:48; 17:19; 18:42.
[5] Jo 8:11; cf. Jo 5:14.
[6] Cf. Mt 5:3-4,8,10-11.
[7] Cf. Mt 5:6.
[8] Mt 24:8,22.
[9] Cf. “Teoria da presciência”. In: KARDEC, Allan. A gênese, os milagres e as predições segundo o espiritismo. 1ª ed. esp. Rio de Janeiro: FEB, 2011. p. 458, cap. 16, item 2.
[10] Cf. “Mundos regeneradores”. In: KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o espiritismo. 1ª ed. esp. Rio de Janeiro: FEB, 2011. p. 87-89, cap. 3, itens 16-18. Ou “mundos de regeneração” (ibidem, p. 79, cap. 3, item 4). Em 1862, o espírito Santo Agostinho já escrevia: “[A Terra] chegou a um dos seus períodos de transformação, em que, de mundo expiatório, tornar-se-á mundo regenerador” (ibidem, p. 90, cap. 3, item 19. Grifo nosso). É importante notar, nesta obra, a preferência pela terminologia mundo regenerador, isto é, onde se promove ou se produz regeneração, em detrimento da expressão mundo de regeneração. Afinal, esta pode ser interpretada equivocadamente como mundo regenerado. Em mundo regenerador, a ênfase está na ação de regenerar ou de regenerar-se, na ideia de trabalho a ser feito, que é essencial à compreensão do estágio seguinte no qual a Terra penetrará.
[11] Mt 25:31-32.
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