Certo dia
reparei em um companheiro de atividades, cheio de dedos ao falar abertamente do
trabalho que realizam a Casa dos Espíritos Editora e a instituição parceira que
lhe deu origem, a Casa de Everilda Batista. A vergonha ou o receio que ele
tinha devia-se especificamente à bandeira hasteada por ambas as casas, na qual
declaram positivamente: “Trabalhamos com pretos-velhos e caboclos”.
— Mas o que o
movimento espírita vai pensar? — perguntava ele. — Uma casa espírita aparecer
com músicas como as que estão no cd
Cantigas de preto-velho? Que casa espírita lança um cd com canções associadas a
pretos-velhos e caboclos?
— Entendo suas
apreensões — respondi. — Acontece que a nossa sina começou há muito tempo,
desde a publicação de Tambores de Angola. Quando lançamos o livro, você
se lembra, muitos disseram que havíamos nos tornado umbandistas; agora não há
como voltar atrás.
— Então!
Imagine um cd…
—
Mas alguém precisa falar contra o preconceito. Só porque o autor espiritual
aborda o tabu umbanda e espiritismo quer dizer que deixamos de ser espíritas?
Só porque lançamos um cd com
canções que homenageiam os pretos-velhos e caboclos, que tanto têm feito por
nós, espíritas, tornamo-nos “antidoutrinários”? Faça-me o favor! Não perdemos
a definição espírita de nossas atividades, porque espírita é o método de
trabalho. Kardec é bom-senso, e o codificador debatia qualquer assunto, sem
medo nem ideias preconcebidas. Quanto aos espíritos, para eles não há barreiras
religiosas: onde está o códice que informa a aparência correta de um “espírito
espírita”? Kardec fala que é o conteúdo da comunicação que importa, e
não a aparência do espírito, que pode ser forjada com facilidade.
As
preocupações do companheiro de trabalho, no entanto, não eram infundadas. Com
efeito, tudo que se relaciona à cultura religiosa do negro costuma ser assunto
controverso, especialmente no meio espírita. Não obstante tanta relutância
tenha fortes raízes históricas, é hora de começar a arrancá-las.
Aculturação
O espiritismo
de Allan Kardec floresceu no final do séc. xix,
entre as camadas mais abastadas da população brasileira, em meio às
elites intelectuais e econômicas. O que era de esperar, tendo em vista que é
uma doutrina filosófica de implicações morais e científicas, escrita em idioma
estrangeiro, oriunda da França, país que à época detinha a hegemonia cultural e
ditava as regras do que era chic.
O
processo de aculturação do espiritismo, ao aportar num país de características
tão diversas quanto o Brasil, também era previsível, senão necessário. Além da
tradução para o português, era crucial assimilar os aspectos que compunham a
história e a cultura brasileiras, caso houvesse a intenção de disseminar a nova
doutrina. E havia, pelo menos da parte dos espíritos que coordenam os destinos
da nação.
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Espírito
também tem cor (!)
Uma das
questões que em breve viriam à tona diz respeito à feição ou à roupagem
fluídica dos espíritos presentes nas reuniões mediúnicas. Para onde iriam os
espíritos de negros e indígenas que desencarnavam na psicosfera brasileira?
Além dos médicos, filósofos, advogados e demais intelectuais, também morriam os
pobres do povo e os pretos, recém-alforriados pela Lei Áurea de 1888.
Que critérios
estabelecer?
Nas páginas de
Kardec, nada sobre pretos-velhos ou caboclos, pois que não havia nem emigração
das colônias africanas para a França. No máximo, o depoimento de um soldado,
morto nos campos de batalha das guerras nacionalistas do continente europeu.
Como proceder, então, com essa gente desencarnada?
Assim como a
prática de capoeira outrora foi considerada crime, prevista no Código Penal,
falar em preto, ainda mais velho, é assunto proibido em muitos locais. Ouvem-se
espíritas a debater teorias: “Se der ‘estrimilique’, se errar na conjugação
verbal e fizer menção a arruda e guiné”, que são as ervas da medicina de que
dispunha a população, “é espírito atrasado”.
A
lógica absurda tem justificativa. Afinal, como receber orientação daqueles
mesmos que mandávamos amarrar no pelourinho e durante tanto tempo foram
comercializados na praça pública, como gado? As imagens do passado espiritual
estão fortemente impressas em nossas mentes.
Espiritismo
cana-de-açúcar
Às vezes chego
a me sentir como se estivéssemos fazendo espiritismo num engenho do Brasil
colonial. É que, resquício da época da escravidão, subsiste um certo pavor de
se misturar com qualquer coisa que venha dos negros.
É o advento da
senzala na realidade espiritual.
Negros não
prestam para assumirmos como mentores e reconhecermos como espíritos elevados.
Para divulgarmos sem barreiras: “Eles nos têm muito a ensinar com sua
simplicidade e sabedoria popular”, também não. No máximo, para fazer um
“descarrego” no ambiente — ops!, limpeza energética — ou para lidar com os
“obsessores” rebeldes ao diálogo tradicional.
Tudo na mais
perfeita discrição. O quanto for possível, sem alarde, para não darmos o braço
a torcer, admitindo que, nessa hora, não são os médicos nem os padres e as
irmãs de caridade que atuam. Não são eles que se dirigem às profundezas do
umbral ou do astral inferior para abordar qgs
das trevas.
Ah! E se
aparecer um Zé Grosso ou um Palminha, espíritos hoje nacionalmente conhecidos e
reverenciados no meio espírita, esqueçamos que eles foram cangaceiros do bando
de Lampião, o que quer dizer: nordestinos, provavelmente analfabetos,
acostumados ao lombo do jegue e ao chapéu de couro — e certamente à pele escura
e queimada de sol. Mesmo que trabalhem com Joseph Gleber, Fritz Hermman ou
Scheilla, fechemos os olhos para o fato de que seus nomes destoam da
característica europeia dos demais e continuemos a nos enganar.
Mas se negros
e mulatos não prestam para aparecer e ser reconhecidos, não aguentamos viver
sem eles — nem ontem, nem hoje.
Na época
colonial, o negro não sabia de nada, mas a cana-de-açúcar que produzia a
riqueza era plantada, colhida e beneficiada por suas mãos. Não eram tidas como
gente, mas foram as mulheres pretas que criaram os filhos, amamentaram os
bebês, cuidaram da casa, do jardim e das roupas, prepararam a comida que
serviam aos convidados.
Na atualidade,
mesmo sem gozar do reconhecimento amplo — que não é seu objetivo —, as mães e
os pais-velhos dão importante contribuição nos centros espíritas “kardecistas” de todo o Brasil.
Aceitos ou não, já se acostumaram com a discriminação; não é isso que importa.
Percebidos ou
não pelos médiuns da casa-grande, são os caboclos que manipulam o bioplasma das
ervas, são os pretos-velhos que preparam o ectoplasma utilizado em reuniões de
cura e tratamento espiritual. São eles que, por vezes, detêm a sabedoria
simples que tocará aquele espírito furioso, revoltado com a fome, o abandono e
a chibata que experimentou e que muitos de nossos médiuns, doutrinadores e
mentores desconhecem. São eles que farão frente aos chefes das trevas,
impondo-lhes o respeito, o limite e a autoridade moral, o que uma alma mais
doce ou delicada não poderia fazer. Acaso estou enganado e situações como essas
só ocorrem em terreiros de umbanda?
É ou não é o
perfeito engenho, a estrutura social da colônia que se reproduz de modo atávico
e ancestral, projetando-se até na questão espiritual?
De Paris
para o Pelô
O primeiro
centro espírita com base nos livros de Kardec de que se tem notícia no Brasil
foi fundado em Salvador, na Bahia de Todos os Santos, no ano de 1865. Ex-capital
federal, ostenta até hoje o belo Elevador Lacerda, que conduz à Cidade Baixa e
ao mercado em que se vendiam negros.
Está aí um
retrato fiel do ambiente espiritual brasileiro: Allan Kardec posto justo ao
lado do Pelourinho. Talvez mera coincidência, talvez uma forma de a vida nos
lembrar do compromisso que temos com os povos negro e indígena — explorados e
massacrados pela civilização dos colonizadores — e que deve ser resgatado desde
já, também no trato com o além-túmulo.
Que cesse o
preconceito e que vivam as curimbas e as mandingas de preto-velho, a garra e as
ervas dos caboclos. Que viva a atmosfera espiritual do Brasil, onde cada um
mantém seu método de trabalho, mas sabe respeitar e auxiliar onde quer que seja
preciso, com espírito de equipe e de solidariedade. Que vivam os médicos
alemães, as freiras e os padres católicos, os árabes e indianos de turbante, os
soldados de Roma e todas as falanges e nações que, na pátria espiritual, se
reúnem em torno da insígnia de Allan Kardec — e, sobretudo, sob a bandeira do
Cristo, de amor e fraternidade.
Da França
para o Brasil, dos
livros à cesta básica
O espiritismo
popularizou-se como uma religião no Brasil principalmente devido à influência
de Francisco Cândido Xavier (1910-2002), dada à repercussão de sua obra e ao
respeito que conquistou. Com bastante ênfase na ação social ou obras de caridade,
emprestando feição consoladora e confortadora ao trabalho dos espíritos, o
médium de Pedro Leopoldo, MG, era tido unanimemente como exemplo de amor e
abnegação. Inspirou a fundação e transmitiu orientações espirituais a centenas
de instituições beneficentes em todo o país, além de ter deixado mais de 400
livros psicografados, que prestaram contribuição inestimável à consolidação da
mensagem espírita.
Antes dele,
outros ícones também deixam transparecer o esforço dos dirigentes espirituais
da nação brasileira para transformar o espiritismo em algo acessível à
população em geral. A ideia era adaptá-lo ao contexto histórico e sociocultural
do país, sem contudo perder sua feição científica e filosófica, que deveria se
manter despojada da pompa acadêmica.
Assim, existiram intelectuais que muito
contribuíram para a disseminação do espiritismo e, durante toda a vida, foram
homens com notável atuação junto à população de baixa renda. Destacam-se, entre
outros, o médico, deputado federal e presidente da Federação Espírita Brasileira,
Adolfo Bezerra de Menezes (1831-190), bem como o médium notável e professor
Eurípedes Barsanulfo (1880-1918), fundador do Colégio Allan Kardec, em
Sacramento, no Triângulo Mineiro.
Leonardo Möller
Editor da Casa dos Espíritos, professor e coordenador de reuniões mediúnicas na Casa de Everilda Batista e instrutor do Master em Apometria, curso com Robson Pinheiro.
Texto escrito originalmente para o jornal Spiritus, publicado e distribuído pela Casa dos Espíritos Editora e pela Casa de Everilda Batista. Junho de 2004.
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