por Leonardo Möller editor
Acabara de
passar em frente a um local que, por mais tarde que eu chegue do trabalho,
sempre tem um movimento particular. Viaturas policiais, casais ou adultos do
lado de fora da grade, na calçada, e alguns lá dentro, esperando qualquer
coisa. Frequentemente, também, algum jovem ou adolescente. De dia, a mesma
coisa. É no quarteirão do meu apartamento e caminho obrigatório ao descer do
ônibus, de volta pra casa. Hoje parei para ler a placa, pela primeira vez nos
poucos meses em que moro ali. O nome é enorme, como só repartições públicas
sabem ter, mas lá no meio dele aparecia: Atendimento ao Adolescente Autor de
Ato Infracional. Eu nem sabia que isso existia.
Uns passos
mais, após contornar a esquina, vejo um guri — como dizemos em minha terra —
magricela, com uma camiseta surrada e, mesmo à distância, visivelmente maior
que o número dele. Bem maior. Logo reparo que está descalço. No centro da
cidade, pra lá de 10 da noite, aquele jeito de caminhar gingado, descalço na
rua… Não podia ser boa coisa. Os pés dele eram pretos, escuros mesmo. E, como
ele não era negro nem de longe, o pretume fazia com que se destacassem,
formando uma espécie de bota de sujeira sobre a pele. Ao redor, tudo era obscuro;
o comércio fechado só nos deixava iluminados pelas lâmpadas fracas e antigas
dos postes daquela região, um tanto maltratada. Mesmo assim, como caminhávamos
em sentido contrário, um em direção ao outro, a cena se tornava cada vez mais
nítida.
Graças a Deus —
pensei —, antes de cruzar com ele cheguei ao portão do meu prédio. Parei de
costas para a rua e, enquanto aguardava que o porteiro abrisse a porta de
vidro, acompanhei pelo reflexo se o tal guri ia seguir caminho ou tentar me
roubar, pedir alguma coisa… sei lá. É claro, aparentando total segurança e
destemor — fingidos.
Cinco a dez
passos depois de me ultrapassar, parado que eu estava diante da porta ao longo
daqueles 15 segundos que não acabavam nunca, ele se vira para trás e balbucia
qualquer coisa em minha direção. Estica o braço, apontando para onde eu estava,
e diz de novo as mesmas palavras. Só entendi isto: “Ó o fninho aírrmão”.
Minha reação? Não
respondi, fingi que não era comigo, torci que a porta abrisse logo. “Cadê o
porteiro, que não desgruda os olhos do futebol sagrado de toda quarta-feira à
noite, neste país?”
Ufa! Entrei e
lacrei o portão de vidro atrás de mim. O clique da fechadura pareceu-me o ruído
mais agradável do dia. Definitivamente, eu não saberia como interagir com
aquela figura estranha.
Cumprimentei o
porteiro, entrei no elevador e, dentro dele, subitamente me dei conta… Da única
palavra que havia compreendido, deduzi o restante da frase do guri: “Olha o
interfoninho aí, irmão”.
E não é que o
guri me chamou de irmão? E não é que ele queria, a seu modo, ajudar? Logo a mim,
que não soube ter outra reação perante ele — de costas pra ele — que não o
receio ou o susto? Naquele instante, o tratamento com pinta de gíria ganhava outro
sentido para mim. Irmão. O guri se
dizia — e era — meu irmão.
Irmão. Essa palavra, clara porque pronunciada com o erre bem marcado, quase
à moda carioca, me fez lembrar O
descobrimento, de Mário de Andrade, particularmente o trecho que conheci na
voz de Ferreira Gullar.
Abancado à escrivaninha em São Paulo
na minha casa da Rua Lopes Chaves
de supetão senti um friúme por dentro
Fiquei trêmulo, muito comovido
com o livro palerma olhando pra mim
Não é que me lembrei que lá no norte, meu Deus!
muito longe de mim
na escuridão ativa da noite que caiu
um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos
olhos,
depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
faz pouco se deitou, está dormindo.
Esse homem é brasileiro que nem eu.
Ao entrar em
casa, meu apartamento novo pelo qual estou enamorado, pensar sobre o episódio foi
inevitável. Para mim, conviver com cenas como aquela do guri só é possível graças
ao espiritismo. Entender que há alguma justiça e alguma forma de amor a
orquestrar ambas as realidades — a minha e a dele — sem a reencarnação e sem outros
elementos que o pensamento espírita oferece… Eu não posso; nunca pude. Antes de
integrar uma instituição que desempenha um trabalho beneficente que considero
relevante, antes de cooperar com ele, antes de me dedicar a uma profissão que
tem por finalidade difundir ferramentas para compreensão dessa realidade, à luz
da imortalidade… Para mim, era impossível.
E aí brotou minha
oração de gratidão da noite, que se encerra com este texto e, mais importante,
com a vontade renovada de encarar, amanhã e depois, todos os desafios que
ficaram me esperando na Casa dos Espíritos e na Casa de Everilda Batista.
E pra você, o
que torna possível encarar a parte dura do dia a dia?
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