segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

O que alimenta a sua alma?




por Andrei Polessi

Escrever pra mim não é tarefa das mais fáceis, principalmente por não ser escritor. Mas existe um determinado momento em que uma voz nasce dentro da gente e que, mesmo após muito relutar, temos que soltá-la. Não, não me refiro a ser cantor, ventríloquo, artista performático ou nada parecido. Minha voz interior nasceu dentro da minha barriga, mais precisamente no meu estômago.
Essa voz me dizia sobre gostos, temperos, harmonizações e preparos. Seduzia-me com aromas imaginários e com vontades secretas de gulas intermináveis. Falava sobre sabores nunca antes provados, receitas secretas, restaurantes três estrelas Michelin, de uma especialidade “não-sei-o-que, não-sei-bem-de-onde” – tesouros bem guardados, esperando pelo desbravador de colher em punho.

Comigo foi assim desde pequeno, barriga no fogão, assistindo duas grandes experts trabalharem: minha avó e minha mãe. Nada de técnicas francesas ou demi-glacês. Só o simples dom da combinação certa de ingredientes. O bom-senso da pitada – e quanta sabedoria há numa pitada. O conhecimento empírico passado de geração para geração, do carinho e da responsabilidade para com o ato de preparo dos alimentos. Alimentar é muito mais que simplesmente aquecer o estômago de alguém.
Josimar Melo, crítico e apresentador bon vivant gastronômico, é um dos caras que mais respeito e admiro no mundo das panelas tupiniquins. Ele diz: "Gastronomia é uma aquisição. Uma vez assimilada, a pessoa não consegue se livrar dela, passa a ficar mais exigente e a buscar o prazer que a boa comida proporciona". E é assim que eu me sinto na maioria das vezes. Não me considero um chato, sou realmente exigente, porém, democrático.
Gosto do bife acebolado e do confit de canard. Gosto da galinhada com quiabo e da codorna com risoto de pera. Na verdade, tento levar um pouco da filosofia budista pra cozinha: "O caminho do meio".  Vejo nessa escolha, uma opção clara: honestidade.

Antes de tudo, a comida ter que ser saborosa. Simples assim. Mas esta premissa esta sendo esquecida. Aquele “pseudo restaurante” francês que cobra os olhos da cara por uma culinária sem qualidade e com ingredientes de terceira, o famoso chef que todos aplaudem pelo que sua assessoria de imprensa construiu e não seus pratos. Isso é muito frequente e me causa certa indigestão.
Acho que muitos se esquecem que a reunião gastronômica, seja em casa, seja num restaurante, é uma experiência sensorial completa, não só dos paladares. Sabor é o mínimo, depois vem todo o resto. Visual, olfativa, sonora (será que existe algo pior que sentar à mesa com som ligado no último volume em alguma rádio FM?!)

Alimentar é, antes de qualquer coisa, um ato de doação total, de entrega e devoção. Em primeiro lugar é oferecer ao outro, energia imprescindível às células, ao sangue, ao corpo, para que funcionem e trabalhem direito. É manter a máquina azeitada e rodando bem.
Em segundo lugar, alimentar é acalentar a alma, oferecer aquela sensação de proteção e segurança que só se sente depois de uma boa refeição. Sem dúvida remonta ainda de nosso reflexo ancestral evolutivo de perpetuação da espécie, onde alimentados, sabemos que teremos força para lutar por nossas vidas e para proteger nossas crias.
Já nosso primeiro alimento, o leite materno, traz em si doses de amor, de cumplicidade e estreitamento fundamental na relação entre mãe e filho. Pesquisas mostram que as crianças que mamam no peito, desenvolvem maior autoestima, se tornando adultos mais seguros e confiantes. Isso sem falar na carga de imunidade transmitida pelo leite da mãe, fazendo desse primeiro alimento uma verdadeira vacina contra diversos tipos de doenças.

Cozinhar é também meditar, se entregar num mantra silencioso e mental de repetição da receita, das combinações, do picar, do mexer e do imaginar. De esvaziar a mente buscando a verdade a cada prova da colher: “Mais sal? Mais pimenta? Mais amor?!” 
O alimento movimenta o mundo, molda nossas culturas, costumes e nossa vida. Há quem diga que a fome é o melhor tempero. Eu acrescentaria o carinho.
A honestidade na proposta de um prato, de um vinho que acompanhe, de um ambiente que abrace, tudo preparado com cuidado, com atenção, com amor. Aquele velho bom senso da pitada. Seja no preparo de um prato simples e barato, seja num clássico da cozinha internacional com ingredientes raros. Afinal de contas, tudo o que se quer ao se sentar numa mesa, é passar bons momentos e ter uma experiência memorável e construtiva. Que nos faça entender um pouco mais sobre nós mesmos, conversando, rindo e interagindo com amigos e família. E que melhor guia, se não a gastronomia pra nos levar por esses caminhos?

Vejo a indigestão como algo extremamente natural. Já dizia Victor Hugo que "a indigestão é uma criação de Deus para impor uma certa moralidade ao estômago".
Nesse ponto temos que convir, tem hora que é melhor ficarmos só na canjinha. Afinal de contas, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém! Pelo menos não na primeira meia-hora.

Um comentário:

  1. Parabéns Andrei. Gostei muito do seu texto. Lembrei imediatamente do Remy (de Ratatouille), quando ele descreve os sabores e a mágia de cozinhar. Até mais

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