Publicar livros é aprender que não existe obra humana isenta de equívocos e imperfeições
por leonardo möller, editor
A luta contra o erro tipográfico tem
algo de homérico. Durante a revisão os erros se escondem, fazem-se
positivamente invisíveis. Mas, assim que o livro sai, tornam-se visibilíssimos,
verdadeiros sacis a nos botar a língua em todas as páginas. Trata-se de um
mistério que a ciência ainda não conseguiu decifrar.
— Monteiro Lobato
Atribuído a um dos mais
célebres escritores brasileiros, que também foi editor e tradutor, o trecho
adotado como epígrafe permanece atual a despeito da imprensa de tipos ter se
tornado obsoleta. Ouso ir mais longe: além de a revisão perfeita ser um mito, existe
outro, de caráter mais amplo, vigente especialmente no meio espírita, segundo o
qual as informações de qualquer livro merecedor de crédito não deveriam estar
sujeitas a ser desmentidas em nenhuma hipótese, tampouco corrigidas.
Sou editor de livros
espíritas, que são obras humanas, por definição. São humanos o revisor e o
editor que os preparam; mais que isso: é humano o
escritor ou médium e — ora vejam! — é humano o espírito que os escreve, no caso
de textos psicografados.
Explico. Recentemente,
recebemos uma mensagem muito atenciosa de um leitor de 18 anos de idade. Questionava
determinada passagem que, segundo ele, estudante de Física, não faz sentido. No
livro Os nephilins[1] afirma-se que Júpiter fora
uma estrela do Sistema Solar. De acordo com o que o leitor informa, as
descobertas da astronomia atestam o contrário, isto é, que o gigante solar
jamais tivera massa suficiente para ser um sol e que, como os demais planetas
do Sistema, resulta do agrupamento de rochas e gases. Submetemos, então, a
questão a outro estudioso da área, que gentilmente confirmou os dados do
leitor. Compete-nos, então, indagar o espírito autor e, na próxima impressão,
apontar a correção ou a divergência e registrar, em nota, o resultado da
apuração. A errata também será publicada no blog.
O pesquisador consultado alertou
para outra suposta imprecisão que identificou. Afirma o texto: “400 ou 500 mil
anos depois”[2]
da destruição do que fora o quinto planeta do Sistema Solar, irmãos das
estrelas envolvidos naquela catástrofe caminhariam sobre o planeta Tiamat, posteriormente
denominado Terra. Conforme o especialista argumenta, seria impossível que tal
evento tivesse ocorrido há tão pouco tempo, em termos astronômicos, sem deixar
vestígios facilmente detectáveis na atualidade. Note-se: ele presume que o
término daquele período coincide com a atualidade, porém tal interpretação é arbitrária.
O livro localiza a chegada daqueles imigrantes não há 500 mil anos, mas cerca
de 500 mil anos após a destruição do tal
planeta, fato precedido pelo colapso de toda a vida ali — trata-se de dois
eventos distintos, e o prazo é contado a partir do mais recente deles.
Portanto, o marco fixado é o inicial, e não o final. Lê-se que alguns daqueles
espíritos teriam se transferido para Tiamat, porém, não é informada a época em que
tais espíritos aportaram no planeta “que mais tarde seria conhecido com o nome
de Terra”.[3] Não poderia ser quando da
diferenciação entre mamíferos e primatas, há cerca de 85 milhões de anos, de
acordo com o que se sabe hoje, ou por ocasião do surgimento dos hominídeos,
aproximadamente 15 milhões de anos atrás? Como se vê, o problema, neste caso, pode
se ater à interpretação, embora caiba investigar.
contaminação
Seja como for, a tese que causa
espécie é a da contaminação. Diante
da constatação de um equívoco como aquele a respeito da natureza de Júpiter, houve
quem postulasse que o erro depõe contra a credibilidade da obra como um todo,
chegando mesmo a contaminá-la. Santo Deus!
Levado a cabo tal raciocínio, não se salvaria nem A gênese, os milagres e as predições segundo o
espiritismo, último livro lançado por Allan Kardec (1804–1869), pois descobertas
científicas acabaram por refutar algumas teorias ali apresentadas, apesar da
anuência dos espíritos superiores quanto à publicação da obra, ocorrida em 1868.
A credibilidade do codificador também se macularia mesmo no curso dos 14 anos
em que se dedicou às pesquisas espíritas, a partir de 1855, uma vez que fez
correções ou alterações em edições subsequentes de seus livros.[4] Exemplo ilustrativo diz respeito
à classificação dos fenômenos de obsessão. Já em outubro de 1858, Kardec afirma[5] o que reiteraria em 1861,
num texto mais conhecido: “A possessão seria, para nós, sinônimo da
subjugação”.[6]
Todavia, em dezembro de 1863, emenda-se: “Dissemos
que não havia possessos no sentido vulgar do termo, mas subjugados. Queremos reconsiderar esta asserção, posta
de maneira um tanto absoluta, já que agora nos é demonstrado que pode haver
verdadeira possessão”.[7]
No limite, nenhum trabalho
científico sobrevive à prova da isenção de erro, pois as teorias científicas
estão sob constante revisão. Nem por isso, entretanto, está em xeque a
credibilidade da ciência, como método de investigação da realidade. Pelo
contrário, é sua capacidade de atualização que lhe confere perenidade. Tampouco
os acertos de um gigante como Isaac Newton são desacreditados e sequer perdem
brilho porque ele se dedicou com ardor à alquimia ou cometeu enganos ali e acolá
em suas conclusões.
perfeição
à vista! ou seria delírio?
Em alguma medida, e nem
sempre deliberadamente, a expectativa que parece cercar o trabalho mediúnico,
mesmo da parte de pessoas esclarecidas em matéria de espiritismo, é a
perfeição. Existe tamanho pavor do erro, tal é a relutância em confessá-lo e
fazer as correções necessárias… É como se a todo instante pairasse, sobre a
mensagem espírita, no todo ou em particular, o medo de que, à menor
demonstração de equívoco, todo o edifício das ideias ali expressas fosse ruir.
De onde vem isso? É o próprio Kardec quem declara: “Para mim, eles [os
espíritos] foram, do menor ao maior, meios de me informar, e não reveladores predestinados”[8].
Há determinada passagem citada frequentemente, embora nem sempre de maneira
fiel, que assevera: “É melhor repelir dez verdades do que admitir uma única
falsidade, uma só teoria errônea”.[9]
A recomendação do espírito Erasto prescreve a prudência, exalta o exame
criterioso, mas não abona interpretação que condene todo um trabalho porque
contém enganos pontuais.
Como supor atingível qualquer
grau de perfeição — se é que a perfeição tem gradações, já que é, por
definição, um conceito absoluto —, uma vez que o fenômeno espírita tem diversas
e severas limitações? De que modo, se todos os agentes nele envolvidos,
notadamente espírito e médium, são humanos e falíveis, conforme assinalado na
introdução deste artigo?
Kardec chegou a falar em doutrina
“isenta dos erros e dos preconceitos”,[10] como faz na edição original
de O livro dos espíritos, de 1857, aquela que acabaria por se tornar tão
somente o esboço da edição definitiva. Não obstante, já na versão final —
publicada três anos mais tarde e, a partir de então, submetida apenas a leves
alterações —, o codificador optou por abolir aquela expressão ambiciosa. Que se
note: aquele livro não se trata de uma obra psicografada, pura e simplesmente;
muito pelo contrário, consiste numa compilação de diversas comunicações recebidas
por diferentes médiuns, cotejadas entre si e, às vezes, fundidas por Kardec,
com redação aprimorada, sob a coordenação dos espíritos que compunham a falange
daquele que assinava Verdade. À parte as comunicações propriamente ditas,
obtidas por meio de perguntas formuladas pelo codificador, são de sua autoria
comentários, notas, explicações e ensaios teóricos que complementam as
mensagens ali reproduzidas. Se acerca de obra de tamanha envergadura, fruto de
quatro anos e meio de exaustivas pesquisas e revisões, o próprio coordenador abdicou
de declará-la “isenta dos erros e dos preconceitos”,[11] que médium teria a
pretensão de cumprir essa máxima?
Se a ciência e os campos do
saber humano gozam da prerrogativa de jamais se proclamarem obra acabada, pois se
submetem a constantes revisões e aprimoramentos, como imaginar que qualquer
livro espírita não esteja sujeito a princípios análogos, que, em última análise,
caracterizam a jornada humana em busca do conhecimento? É evidente que não se
trata de legitimar textos repletos de erros grosseiros e manifestamente
levianos, inverídicos ou pueris. No entanto, daí a exigir que as comunicações
sejam incólumes ou, então, a desprezá-las na íntegra porque contêm um ou outro
engano — a despeito do esforço editorial por esmiuçar o conteúdo e confrontá-lo
com os conhecimentos disponíveis —, a distância é bastante longa.
Em outras palavras: como
cobrar dos espíritos — e, em última análise, do médium, como veículo de
manifestação ou intérprete do seu pensamento — aquilo que nós outros não estamos
aptos a fazer? Como, se todos os espíritos com os quais interagimos, por mais
esclarecidos que sejam, são humanos e sabidamente limitados em seu conhecimento
da verdade?
Mais: como esperar que os
espíritos fundamentem, em conformidade com os postulados da ciência humana da
época em que escrevem, toda e qualquer afirmativa de caráter científico? Então
vamos restringir a psicografia a cientistas — versados na ciência terrena mais
atual — e vedá-la a escritores e romancistas em geral? Porventura não compete aos
encarnados a apuração meticulosa das informações trazidas por meio da mediunidade,
na medida do possível? Ainda, em virtude da natureza da revelação espírita, é oportuno
ressalvar: em muitas circunstâncias, não está ao alcance averiguar a veracidade
dos dados, quando muito, sua verossimilhança ou plausibilidade. Isso sem falar
na precariedade material da indústria editorial espírita, geralmente premida
por orçamentos modestos e sob forte pressão para praticar preços inferiores à
média de mercado, contexto que acarreta impacto sobre os recursos humanos
dedicados à pesquisa.
Portanto, abaixo a utopia! Se
gozar de credibilidade exigisse completa ausência de erros e equívocos, então
estaríamos todos em maus lençóis.
Leonardo Möller
Editor
da Casa dos Espíritos, professor e coordenador de reuniões mediúnicas
na Casa de Everilda Batista e instrutor do Master em Apometria, curso
com Robson Pinheiro.
[1]
pinheiro,
Robson. Pelo espírito Ângelo Inácio. Os
nephilins. Contagem: Casa dos Espíritos, 2014. p. 48.
[2]
Ibidem. p. 118.
[3]
Ibidem, p. 118-119.
[4]
Amostra eloquente deste fato se pode ler em um apêndice constante apenas da 5ª
edição francesa, de 1861, que foi recuperado em tradução recente e lista seis emendas
omitidas até então (cf. “Errata”. In: kardec, Allan. O livro dos espíritos. Tradução de
Evandro Noleto Bezerra. 2. ed. Rio de Janeiro: feb, 2011. p. 645-647).
[6]
kardec,
Allan. O livro dos médiuns ou guia dos
médiuns e dos evocadores. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Rio de
Janeiro: feb, 2011. p. 371, item 241.
[7]
kardec.
Revista espírita. Op. cit. p. 499 (v.
6, 1863). Grifo nosso.
[8]
“A minha iniciação no espiritismo”. In: kardec, Allan. Obras póstumas. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. Rio de
Janeiro: feb, 2009. p. 351.
[9]
kardec.
O livro dos médiuns… Op. cit. p. 340,
item 230.
[10]
“Prolegômenos”. In: kardec, Allan. O livro dos espíritos: edição histórica bilíngue (1857). Tradução
de Evandro Noleto Bezerra. Brasília: feb, 2013. p. 67.
[11]
A citação é alvo de alguma controvérsia. Outro tradutor é da opinião de que
tais erros e preconceitos — ou “prejuízos”,
tradução equivocada de préjugés — não se referem a postulados
da doutrina, mas àqueles que foram “espalhados desde o aparecimento dos
fenômenos [espíritas] na França (1853)”. A hipótese é plausível, entretanto, tal
tradutor se limita a emitir o juízo, sem arrolar seus argumentos (kardec,
Allan. O primeiro livro dos espíritos: texto
bilíngue. Tradução de Canuto Abreu. São Paulo: Cia. Ismael, 1957. p. 30, nota 1).
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