segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

“A força da grana, que ergue e destrói coisas belas”



Após o post intitulado Críticas e o exercício da reflexão, recebemos o seguinte comentário, reproduzido logo abaixo. Como estou numa semana de inspiração, cheio de reflexões suscitadas a partir desses mesmos comentários, queria escrever mais um argumento inspirado nas palavras a seguir e menos uma resposta, propriamente dita. A intenção não é alimentar réplicas e tréplicas, mas refletir sobre a relação que nós, espíritas de modo geral, temos com o comércio e o dinheiro.

Eis o comentário:


Prezado Leonardo Möller, gostaria somente de completar algo de O Evangelho segundo o espiritismo, cap. 26, questão 10. “(…) eles podem a isso por um preço; o médium curador transmite o fluido salutar dos bons espíritos; ele não tem o direito de vendê-lo”. Jesus e os apóstolos, conquanto pobres, não faziam pagar as curas que operavam. Como existem centos espíritas, há centros espiritualistas, que não tem nada haver com a doutrina de Allan Kardec. Portanto, há uma diversidade de doutrinas espiritualistas, que, pegam um trecho do “ESE” [O Evangelho segundo o espiritismo] e faz (sic) um fundamento totalmente equivocado da Doutrina! Eu respeito seu posicionamento, pq vc é editor, e quer vender, somente isso! Reflita sobre o que eu te escrevi! Rodrigo Starling Lopes


Fico pensando… Evidencia-se ao longo de todo o texto, à medida que o lemos, que o capítulo citado de O Evangelho segundo o espiritismo aborda a prática da mediunidade, condenando a atitude dos médiuns que comercializam aquilo que chama de “dom gratuito: o de serem intérpretes dos Espíritos, para instrução dos homens, para lhes mostrar o caminho do bem e conduzi-los à fé, não para lhes vender palavras que não lhes pertencem, a eles médiuns, visto que não são fruto de suas concepções, nem de suas pesquisas, nem de seus trabalhos pessoais” (kardec, Allan. O Evangelho segundo o espiritismo. Rio de Janeiro: feb, 2005. 1ª ed. esp. p. 468, cap. 26, item 7). Não apenas nesse trecho, mas em vários outros pontos, fala-se da mediunidade gratuita, de não se cobrar pelo exercício da faculdade mediúnica. Mais adiante, lê-se, por exemplo: “A mediunidade, porém, não é uma arte, nem um talento, pelo que não pode tornar-se uma profissão” (Ibidem, p. 470). Mesmo quando comenta o episódio em que Jesus expulsa os vendilhões do templo (Mt 21:12-13), Kardec deixa claro tanto o que é condenável quanto a linha de raciocínio que adota: “Deus não vende a sua bênção, nem o seu perdão, nem a entrada no reino dos céus. Não tem, pois, o homem, o direito de lhes estipular preço” (Ibidem, p. 438). Em suma, o próprio versículo que dá nome ao capítulo não deixa margem a dúvidas: “Dai gratuitamente o que gratuitamente haveis recebido” (Mt 10:8. Grifo nosso).

Se a condenação é quanto a comercializar aquilo que recebemos gratuitamente, por que há certo desdém em relação à prática do comércio irrestritamente, sobretudo mas não só dentro das casas espíritas, fato que observo em tantos adeptos do espiritismo e até mesmo no discurso oficial de algumas instituições? Sim! Acredite. Em muitas delas existe restrição quanto à existência de livraria ou lanchonete, porque vender parece ser algo abominável. Também não se pode promover eventos pagos, ou que revertam lucro para a manutenção das instituições.

Entretanto, é preciso fazer a devida distinção. O comércio é algo muito positivo, a meu ver. É uma força motora da sociedade, tão robusta que já foi capaz de provocar rupturas históricas, como quando do surgimento da classe comercial, então denominada burguesia. Naquela época, a sociedade rompeu com a Igreja e o medievalismo vigente, e há quem explique o advento do protestantismo como uma forma de atender à necessidade de uma nova cultura religiosa, que não condenasse o lucro e a usura. Lembra os dias de escola? É por meio do comércio que trocamos informações, experimentamos o diferente, podemos usufruir de tantas coisas, desde viagens, educação, cultura e entretenimento até os cuidados com vestuário, saúde, nutrição etc.

De mais a mais, não é meio demagógico banirmos o comércio como algo maldito, sendo que todos sobrevivemos graças ao comércio, em certa medida? Sim, quem trabalha na indústria é pago porque a produção é vendida; quem trabalha no comércio de produtos e serviços ou é profissional liberal, nem se fala. Quem milita na esfera estatal recebe proventos porque foram auferidos impostos em toda a atividade produtiva, comercial e financeira. Até quem atua no terceiro setor, com ajuda governamental, recebe verbas para o trabalho beneficente porque a maioria, por meio do comércio, contribuiu com recursos que possibilitam as ações de erradicação da miséria.

No que tange à história do espiritismo, vale lembrar que foi por meio do comércio que o espiritismo se difundiu. Alto lá! Não me degolem ainda.

A doutrina se estruturou graças à inspiração da falange do espírito Verdade e à mediunidade, eu sei. E, em grande medida, devido ao gênio investigativo, perspicaz e genuinamente científico do homem Allan Kardec, um inquiridor “de tirar o chapéu”. Agora, tudo isso teria ficado perdido na poeira dos tempos, ou restrito a um pequeno círculo que conservaria a tradição por via oral, caso não fosse o comércio. Sim, a atividade comercial proporcionou o investimento tanto no processo editorial como na impressão e distribuição de O livro dos espíritos e, mais tarde, das demais obras. Até onde sei, o espiritismo é a única filosofia que contém aspecto religioso que nasceu não com a fundação de um templo, não com a pregação ou os gestos de um missionário; nasceu, em vez disso, com a publicação de um livro. Um livro que, tão logo pronto, foi vendido. Isso mesmo! Vendido, vendido, vendido!

Então, pergunto: acaso Kardec e seus editores não queria que o livro vendesse? Vou além: acaso a falange do espírito Verdade dedicou-se à produção do livro — cuja publicação eles próprios determinaram a Kardec — sem esperar e até desejar que fosse vendido? Meu Deus! É o comércio que possibilitou que o livro chegasse até o Brasil, até nossa mão, na atualidade, trazendo os princípios espíritas de forma mais fiel que qualquer outro método pudesse garantir. O comércio foi a bênção que remunerou as centenas e centenas de horas investidas em tradução, revisão e edição, assim como tornou possível o enorme investimento em papel, impressão e distribuição, exposição e venda ao consumidor final.

Como se vê, ao vender um livro, por exemplo, não se vende nada obtido gratuitamente; muito pelo contrário. Portanto, é uma satisfação enorme vender um livro cujo conteúdo nos enche de entusiasmo, alegria, fé na vida, fervor e desejo de que outros possam ver a vida pelas lentes ali apresentadas.

Quando nosso leitor Rodrigo afirma que sou “editor, e quer[o] vender, somente isso”, é como se vender estivesse em oposição ao grande objetivo de todos nós, que é a difusão das ideias espíritas. Ou como se fosse um objetivo menos nobre. É como se vender fosse algo comparável a imiscuir o profano em meio ao sagrado da doutrina espírita… Puxa, chega de pautarmos nossa visão da vida em termos de sagrado e profano, numa atitude inconsciente tão afeita à mentalidade medieval, barroca.

Como mencionei na introdução, não escrevo somente respondendo a Rodrigo, mas lançando uma ideia a todos aqueles que, em inúmeras vezes, vi, ouvi ou li condenarem a atividade comercial e o empenho em fazê-la da forma mais eficaz possível — principalmente quando o produto é de caráter espírita.

É verdade que me parece relativamente novo esse movimento de repúdio ao comércio mais ou menos presente nas fileiras espíritas; tem crescido nas últimas duas ou três décadas, acredito. Antes disso, desbravadores e grandes personalidades do espiritismo brasileiro fundaram uma tradição de muito comércio, sobretudo de livros espíritas, por meio de livrarias, feiras, bancas e outras iniciativas. Tanto assim que, historicamente, é seguro afirmar que o principal meio de financiamento do movimento espírita tem sido a publicação e venda de livros de conteúdo doutrinário. Tanto da parte das editoras, muitas das quais vinculadas a audaciosas obras sociais e de difusão espírita, quanto da parte dos centros espíritas, que tinham na livraria e no incentivo ao consumo de livros e à leitura sua grande fonte de renda, a fim de manter as atividades. Afinal, a contribuição regular de sócios beneméritos nunca foi o forte dos adeptos do espiritismo no Brasil, que geralmente não simpatizam com nada que se assemelhe, nem de longe, ao dízimo.

Dessa maneira, sou forçado a perguntar: a que se deve esse movimento recente em direção ao temor ou à condenação da venda e do comércio em ambiente espírita — e até fora dele? Como disse anteriormente, ninguém está falando de vender o que foi concedido de graça; jamais poderia defender a comercialização da mediunidade, das curas, das comunicações verdadeiramente esclarecedoras e consoladoras a que assistimos tantas vezes na prática espírita cotidiana. Será que essa visão negativa sobre a venda, às vezes velada, mas consistente, não pode ser uma estratégia daqueles que se opõem à larga difusão das ideias de Jesus? Não é coerente imaginar que procurem agir justamente sobre o calcanhar de Aquiles dos religiosos em geral, que é a relação com o dinheiro? Será que não pode ser uma tática ardilosa cujo objetivo é boicotar o crescimento e a modernização das instalações espíritas, e consequentemente seu enfraquecimento? Afinal, quem condena o comércio nas casas espíritas apresenta alternativas sensatas e viáveis de financiamento dessas instituições, em caráter universal? Depender exclusivamente de doações não se enquadra nessa categoria; nenhum trabalho relevante pode estar sujeito às flutuações naturais desse processo.

Voltando à realidade do livro, pergunto também: por que será que, progressivamente, aquelas livrarias espíritas que destinam seus lucros à manutenção de instituições têm perdido mercado para as livrarias convencionais, que descobriram o sucesso que é a seção de volumes espíritas bem abastecida?

Sim, eu quero vender livros espíritas. Os da Casa dos Espíritos, os de Kardec, os demais, especialmente aqueles de que mais gosto, porque acredito têm mais aspectos interessantes, relevantes, e estilo que aprecio. Quero vender, sim, mas não “somente isso”, como afirma Rodrigo, desconfiado. Quero vender um produto que seja o melhor possível, o mais bem elaborado e acabado que estiver a nosso alcance. Quero vender sempre mais, de modo que nós, espíritas, possamos investir mais e mais em publicidade e ações de marketing que tornem as ideias espíritas mais conhecidas a cada dia, na medida que despertam o interesse do maior número de pessoas possível. Vender, a fim de que tenhamos mais recursos para dedicar ao patrocínio e à produção de filmes, à edição e à tradução de livros, à venda de direitos autorais de nossa vasta bibliografia no exterior, possibilitando e tradução e a distribuição dos livros espíritas fora das estreitas fronteiras de nosso idioma e de nosso país. E porque, além de acreditar que faz bem à alma, só se pode fazer isso mostrando às editoras estrangeiras que o livro espírita é um bom negócio.

Estou certo de que não há uma linha em Kardec ou em Jesus que condene o comércio, de modo absoluto e irrestrito; que repudie o dinheiro e os recursos para empregar em boas coisas. Há, sim, recriminação da ganância, da exploração, da corrupção, do egoísmo, da desonestidade… Mas, assim como Kardec fez com O livro dos espíritos — um sucesso comercial instantâneo, a sua época —, estou convencido de que comércio pode ser feito sem incorrer em nenhuma dessas práticas. Portanto, é importante ser preciso ao declararmos nosso repúdio. Vender é bom, sim! Além do mais, gerar renda, emprego e impostos com um trabalho de qualidade é bom para o país e a sociedade; é uma das alegrias de ser empreendedor.

Desejo muita prosperidade às iniciativas espíritas, para que possam fazer sempre mais. Desejo essa ambição, esse fervor ardendo no peito de dirigentes e líderes espíritas, pois é bom ver nossa fé produzir frutos. E, ainda, é lamentável ver belos trabalhos fechando as portas ou sobrevivendo à míngua, às custas de alguns poucos, que se sacrificam, não raro além de suas possibilidades, em nome do ideal que lhes move.

Além disso tudo, desejo também que nós, espíritas, possamos fazer as pazes com a “força da grana, que ergue e destrói coisas belas”, como diz Caetano Veloso em sua canção Sampa. Porque temos muita beleza a erguer, sob as bênçãos do espírito Verdade. E porque, como diz o Codificador, “os recursos financeiros são o grande motor de todas as coisas, quando empregados com discernimento” (“Projeto: 1868”. In: kardec, Allan. Obras póstumas. Rio de Janeiro: feb, 2005. 1ª ed. esp. p. 411).


Grande abraço!

Leonardo Möller
Editor da Casa dos Espíritos
Vice-Presidente da Sociedade Espírita Everilda Batista

Um comentário:

  1. Leonardo, parabéns pelo comentário. Bastante lúcido e objetivo. Quem condena as atividades comerciais de um modo integral não refletiu, em verdade, que elas movem várias alternativas de manutenção , crescimento e propagação de ideias, criações,e, no caso de instituições que promovam a libertação das consciências( o que é algo extremamente nobre)como as espiritualistas, isso conta como um ponto positivo, já que a cobrança se faz apenas no intuito de que a obra tenha onde se firmar e continuar propagando as suas ideias. O dinheiro (aceitando ou não) sempre vai estar presente na concretização de quase tudo nesta vida!
    Seu comentário foi feliz e esclarecedor e eu concordo com vc!

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